A VIDA E A SOMBRA

É no crepúsculo que a vida acontece, na luminosa vida social apenas revelamos a sombra do que realmente somos. As pessoas não se mostram, não se revelam na totalidade como mecanismo de sobrevivência na selva da vida social. Por isso, quando as pessoas fazem determinadas coisas que nunca imaginamos que seria capaz de fazer o que fez, a surpresa surge como uma erupção vulcânica, pois, naquele instante ela saiu da sombra, se revelou. Como escreveu Marcel Proust, no Caminho de Guermantes, “uma pessoa não está… nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projetos, as suas intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), MAS É UMA SOMBRA em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e alias contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verossimilhança, que brilham o ódio e o amor”. Na dinâmica das sombras a vida social como um rio flui, somos sombras para os outros na mesma medida que eles são para mim.  Sombras impenetráveis, temos sempre uma visão deformada do outro. O poeta argentino Jorge Luís Borges no seu livro Elogio da sombra, escreveu o seguinte poema:

 

HERÁCLITO

“O segundo crepúsculo.

A noite que mergulha no sono

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo.

A manhã que foi a aurora.

O dia que foi a manhã.

O dia numeroso que será a tarde desgastada.

O segundo crepúsculo.

Esse outro hábito do tempo, a noite.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo…

A aurora sigilosa e na aurora a inquietude do grego.

Que trama é esta do será, do é e do foi?

Que rio é este pelo qual flui o Ganges?

Que rio é este cuja fonte é inconcebível?

Que rio é este que arrasta mitologias e espadas?

É inútil que durma.

Corre no sonho, no deserto, num porão.

O rio me arrebata e sou esse rio.

De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.

Talvez o manancial esteja em mim.

Talvez de minha sombra, fatais e ilusórios, surjam os dias”.

 

O título não poderia mais apropriado para a poesia do Borges: Heráclito é o filósofo da aurora da filosofia grega considerado o enigmático, pois seus escritos eram e ainda os são enigmas. Escreveu em forma de sentenças, aforismas e máximas. Heráclito com suas sentenças lembra o animal mitológico a esfinge com sua provocação: Decifra-me ou te devoro? Somos sombras, somos rios em movimentos, somos indecifráveis, pois somos mutantes. Não lamente, pois você sempre será apenas a sombra do amigo, do pai, do filho, etc…. que você acreditava ser. Somos sombras, pois somos rios caudalosos, turvos e violentos. Como escreveu o poeta Paulo Ricardo, da banda RPM, em sua música Olhar 43: “ É um lago negro o seu olhar; É água turva de beber, se envenenar”.

 

O CAMINHO E A VIDA

A vida é um caminho numa rota que escolhemos, existem múltiplas possibilidades e por isso temos que definir qual rota vale a pena seguir…. Depois que escolhemos precisamos seguir o seu fluxo dinâmico, pois a vida é como um rio sempre em movimento, não adianta olhar para os caminhos que deixamos nas encruzilhadas da existência, não nos é permitido escolher retroativamente, como as águas dos rios, nossa vida nunca retroage. Movimento, movere, seguir sempre no labirinto em linha reta, como supõe Jorge Luís Borges, “a vida é um labirinto em linha reta“, porém, muito estriada, nela não podemos recuar para pegar impulso e nem nos é permitido fazer uma paradinha estratégica. A vida é devir. Além disso, não existe destino pré-fabricado ou caminhos já definidos antes de nosso nascimento, as promessas de caminhos já traçados são formas ou tentativas de retirar de nossas mãos a responsabilidade na construção de nosso “destino”, pois como escreveu o poeta Antônio Machado: “Caminante, no hay camino/ se hace el camino al andar“. Assim nossa vida, como um caminho, é um processo lento e gradativo, que se faz a partir de nossas escolhas, nas encruzilhadas que temos que definir qual direção seguir. Porém, não podemos esquecer, “cada um é o ponto de partida de outras bifurcações” (Fang, citado por Deleuze, no livro Diferença e Repetição). Além das bifurcações da vida, o grande Friedrich Nietzsche afirmou que: “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, – para atravessar o rio da vida [no caminho de tua existência] – ninguém, exceto tu, só tu”. Assim, ao longo da caminhada da vida, nos encontramos e nos relacionamos com toda sorte de pessoas, por isso não podemos andar de forma leviana, e nem ter ou relacionar-se com um “coração leviano”, por isso é imperativo saber escolher, apesar das dificuldades nesta tarefa intransferível e fundamental para todos os viventes, pois, toda a nossa felicidade e infelicidade reside na qualidade das pessoas e objetos aos quais nos unimos pela fruição do amor, nos ensina o grande Espinosa. Escolha é se lançar no real, e, de acordo com Antônio Negri, “é absolutamente necessário pular no real, atirar-se nele, mexer-se lá dentro, pois é a única maneira de mudar o mundo. A vida é apenas isto: mudar o mundo, transformá-lo, inventá-lo. Revolucioná-lo. E, no entanto, que preço eu [Antônio Negri] não tive de pagar para recomeçar a construí-lo…. Hoje que o retorno se deu, posso esquecer definitivamente os paradoxos de Zenão. Eu caminho muito. O retorno é recomeçar a caminhar, sair de todos os impasses, e é também – e sobretudo – promover a volta das paixões que haviam sido esmagadas pelo fracasso. Menos lembranças, portanto, que novas experiências. O futuro não tem um coração antigo, o futuro é algo que construímos a cada dia e que, por conseguinte, é sempre novo. Recomeçar não é voltar atrás, não é retalhar e dividir ao infinito os episódios da vida …, não é descansar sobre o passado. É redescobrir a origem. Nós somos comunistas desde a origem; mas a origem é o ato presente. O COMUNISMO É O FUTURO“. Nossa origem é de vida comunitária, conclui o pensador Italiano.