Para inicio de conversa quero, como nota introdutória deste artigo, deixar claro e, ao mesmo tempo, demarcar a trajetória desta aventura sobre a filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677). O título, “Espinosa, conhecimento e felicidade: A filosofia e o sentido da vida”, por ser demasiadamente aberto em sua formulação, pode assim induzir a alguns equívocos, ou gerar algumas expectativas que poderão não ser aqui abordadas. Não pretendo apresentar nenhuma fórmula secreta ou resposta definitiva sobre o sentido da vida na ou da filosofia espinosana. Também não anseio transformar a filosofia de Espinosa e sua experiência do pensar em um tipo de autoajuda. Então, antes que alguém se pergunte o que afinal vai encontrar aqui, quero deixar claro que almejo apenas mostrar como o filósofo Espinosa pensa o sentido da existência humana em sua obra Tratado da Correção do Intelecto, que será denominado a partir de agora apenas pelas iniciais – TCI. O objetivo então é fazer uma aventura no pensamento espinosano e, com isso, quem sabe provocar o interesse por sua filosofia. Assim, para efetivar tal objetivo apresentarei as ideias do Espinosa sobre o sentido da vida humana presente no TCI.
Para finalizar esta nota introdutória, quero apenas revelar que meu interesse pelo pensador se deu a partir de minhas leituras dos livros de Gilles Deleuze sobre Espinosa. Foi ele que me direcionou e revelou a beleza do pensamento do filósofo de Amsterdã. De acordo com Deleuze, a filosofia espinosana é uma filosofia prática, Espinosa foi o príncipe dos filósofos e sua obra “Ética demonstrada à maneira dos geômetras” é um dos maiores livros do Mundo. Outra coisa que me despertou, aos estudos do pensamento desse filósofo, foi saber que Friedrich Nietzsche também foi impactado pela filosofia do Espinosa. Quem conhece minimamente o pensador Alemão Nietzsche sabe que ele não era dado a elogiar ninguém. Sua prepotência, arrogância e insolência se curvaram diante da produção filosófica de Espinosa. Nietzsche revela sua admiração numa carta escrita para um amigo, no dia 30 de junho de 1881, nela ele escreveu: “Estou assombrado e encantado! Tenho um precursor. E de que gênero! Quase não conhecia Espinosa e o que me trouxe agora desejos de lê-lo foi qualquer coisa realmente instintiva. Achei que não só a sua tendência principal é igual à minha – ‘fazei do conhecimento a paixão mais poderosa’ – se não que coincido com ele em cinco pontos essenciais de sua doutrina“.
Nietzsche assombrado e encantado com a intensidade e vigor do pensamento de Espinosa isso, por si, já é algo muito interessante. Além disso, o reconhecimento que sua filosofia tem um precursor na história do pensamento humano. Podemos dizer que alguns pontos que ligam Espinosa à Nietzsche são: A negação do livre-arbítrio, a negação de uma fonte transcendente da moral, o reconhecimento que o bem e o mal seriam realidades em si.
Então vamos à proposta inicial, qual seja, apresentar a visão do Espinosa sobre o sentido da existência humana no TCI.
O CONHECIMENTO E A FELICIDADE HUMANA
Como já foi dito no início, a ideia básica é apresentar a visão de Espinosa sobre o sentido da vida humana presente no TCI. Alguns estudiosos destacam que o TCI é uma espécie de discurso sobre o método espinosano, por sua estrutura e finalidade programática. E, por isso, fazem uma leitura da obra de Espinosa cortejando o Discurso do Método de Renê Descarte, pois, ambos são escritos na forma autobiográfica, entretanto, salta aos olhos as diferenças de interesses, pois enquanto o interesse de Espinosa é, sobretudo, de caráter ético, o interesse cartesiano é gnosiológico. Além disso, a proposta cartesiana é construir uma metodologia que conduza as verdades claras e distintas. O pensador holandês não se pergunta qual a metodologia correta da verdade e nem quais as características dessa verdade para satisfazer um interesse teorético abstrato. Assim, não seguiremos essa linha de raciocínio. Nossa conversa ficará limitada ao Prólogo do TCI, que corresponde aos onze primeiros parágrafos da obra composta por 110 parágrafos. Para Giovanni Reale e Dario Antiseri, o Prólogo do TCI constitui a parte mais bela e luminosa da obra, porque nos abre uma brecha que nos permite ver o próprio espírito do pensador, além disso, revela as causas e os objetivos pelos quais ele decidiu filosofar (1990, p.410). Para Marilena Chauí, o Prólogo é a abertura hipocrática do TCI, no qual o autor busca diagnosticar a doença da alma, buscando o que é mais útil à conservação da vida (CHAUI, 1999, p. 664-5), Espinosa como médico das almas.
Como ressaltam Reale e Antiseri, “O verdadeiro que interessa a Spinosa não e o de tipo matemático ou físico, isto é, um tipo de verdadeiro que não incide sobre a existência humana, mas é precisamente aquele verdadeiro que interessa mais que qualquer outro à vida humana: aquele verdadeiro que se busca para dele desfrutar e em cujo desfrutamento realiza-se o cumprimento e a perfeição da existência e, portanto, a felicidade” (1990, p. 410).
Por isso, podemos dizer, também seguindo Deleuze, que a filosofia espinosana é uma filosofia prática. Espinosa busca a verdade capaz de dar sentido à existência humana, querendo, portanto identificar qual o bem cuja posse pode garantir ao homem a sua plena felicidade. E Espinosa anuncia com toda clareza o seu projeto filosófico logo nas primeiras linhas do seu TCI. Veja o que ele escreveu no primeiro parágrafo desta obra:
Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema“. (§1)
Com estas palavras, fica claro a primazia do interesse ético na construção do pensamento espinosano. Seu projeto filosófico é inteiramente orientado pela busca do bem supremo, definido, também nesta mesma obra, como “o conhecimento da união que a mente tem com toda a Natureza” (§13). Assim, para ele existe uma necessidade fundamental na busca pela felicidade, reconhecer a univocidade das coisas. A filosofia não dualista de Espinosa compreende que existe apenas uma substancia, por isso, temos que compreender a união entre tudo, temos que entender que somos partes constitutivas da Natureza e não existe nada fora dela.
O conhecimento promove nossa integração e gera a “alegria contínua e suprema“, mas qual conhecimento tem essa função? Essa é uma questão fundamental nesse artigo, pois na filosofia espinosana existe uma relação direta entre conhecimento e felicidade. Na visão de Espinosa, toda a vida humana depende da natureza de seu conhecimento e dos tipos de afetos que necessariamente o acompanham. Entretanto, a sua teoria das forças ou a filosofia dos afetos é apresentada de forma completa na sua principal obra: Ética demonstrada à maneira dos geômetras, principalmente na terceira parte intitulada “Da origem e da natureza das afecções“. Com esta filosofia do afeto, Espinosa superar a separação tradicional entre matéria e espírito, criando o que os interpretes do seu pensamento denominaram de paralelismo, isto é, aquilo que afeta o corpo também afeta a alma e vice-versa. Porém, não entrarei nessa temática, no momento, o que nos interessa é apresentar a estreita dependência entre a vida e o conhecimento, que é o objeto de analise do pensador em seu TCI. Nesta obra, Espinosa que escreveu no primeiro parágrafo que em si nada e bom ou mau, também afirmou que não existem ideias falsas e ideias verdadeiras em absoluto, mas apenas ideias e conhecimentos mais ou menos adequados.
E para explicar sua visão de conhecimento adequado, Espinosa tematizou o problema gnosiológico apresentando uma hierarquia do conhecimento em três obras: no breve tratado, no TCI e na Ética. De acordo com Maria Luísa Ribeiro Ferreira, “apesar das oscilações terminológicas e das diferenças de critérios classificativos, há inegavelmente semelhanças e um modo comum de perspectivar a questão: Em primeiro lugar, a existência de graus. Estes são designados diferentemente nas obras referidas. No Breve Tratado, fala-se de opinião, crença e conhecimento claro; No TCI, de conhecimento ‘ex auditu’, ‘ab experientia vaga’, ‘ex alia re’ e ‘per essentian vel cognitionem proximae causae’; na Ética, de ‘imaginatio’, ‘ratio’ e ‘scientia intuitiva’” (1997, p.381)
No TCI Espinosa classificou o conhecimento em quatro tipos, modos ou gêneros, enquanto que nas outras duas obras suas classificação tem apenas três gêneros de conhecimento. Existe um consenso entre os interpretes do pensamento espinosano que essa diversidade de critérios de classificação do conhecimento tem sua formulação definitiva na obra mais importante: a Ética, especificamente no livro II. Nela a terminologia definitiva de certo modo se fixa, por isso, sempre encontraremos nos comentadores a definição que temos três gêneros de conhecimento na filosofia de Espinosa. São eles:
1) A opinião e a imaginação, ligadas as percepções sensoriais e às imagens, sempre confusas e vagas. Fonte de preconceitos tenazes que nos iludem acerca de nós mesmos e de nossa real situação na Natureza, criando paixões violentas, instáveis e alienantes que nos colocam à mercê das coisas exteriores.
2) O conhecimento racional, próprio da ciência, que encontra sua expressão típica na matemática, na geometria e na física. Porém, não é exclusivo destas áreas do saber humano. O conhecimento racional, por sua vez, revela a falsidade daqueles preconceitos e produz afetos ativos, por um lado, permitem moderar a força das paixões e, por outros, fornecem o núcleo afetivo que caracteriza a experiência da felicidade.
3) Conhecimento intuitivo, que consiste na visão das coisas em seu proceder de Deus ou Natureza e, mais exatamente, procede da ideia adequada dos atributos de Deus para a ideia adequada da essência das coisas.
Como para ele tudo é natureza, estes três gêneros de conhecimento são conhecimentos das mesmas coisas, e o que os diferencia é apenas o nível de clareza e distinção. Mínima distinção no primeiro, notável distinção no segundo e máxima distinção no terceiro.
A partir destes gêneros do conhecimento, Espinosa esta nos ensinando a distinguir cuidadosamente entre as ideias fictícias, falsas e duvidosas próprias da imaginação e as ideias intrinsecamente verdadeiras do intelecto. Podemos dizer que estabelecer tal distinção é a função da primeira parte do método espinosano elaborado no TCI. Partindo de uma reflexão sobre as ideias da geometria, Espinosa desenvolve uma teoria original acerca da natureza da verdade que rompe com a tradição que a define pela mera correspondência extrínseca entre o pensamento e seu objeto. Para o nosso pensador, existe nas ideias verdadeiras uma propriedade intrínseca pela qual elas se distinguem das falsas. Como “conhecer verdadeiramente é conhecer pelas causas“, esta propriedade, que Espinosa denomina de adequação, se define pela demonstração completa das causas ou razões do objeto conhecido e, portanto, pela necessidade que articula coerentemente o sistema das ideias verdadeiras.
Assim, para Espinosa, “quanto mais coisas a mente conhece, tanto melhor intelige as suas forças e a ordem da Natureza; quando melhor, porém, entende as suas forças, mais facilmente pode dirigir-se e propor regras a si mesma; e quanto melhor intelige a ordem da Natureza, mais facilmente pode abster-se das coisas inúteis” (§40). Quanto mais adequado for o conhecimento mais adequado será nossa existência, pois os “gêneros de conhecimento são modos de existência, porque o conhecer prolonga-se nos tipos de consciência e de afetos que lhe correspondem, de sorte que todo o poder de ser afetado seja necessariamente preenchido” (DELEUZE, 2002, p.64). Então, para não viver de forma iludida e alienada é necessário conhecer, conhecer a Natureza, “conhecer as minhas forças e a minha natureza, a qual desejo aperfeiçoar” (§18).
Porém, ainda não estou falando de forma genérica sobre essa articulação entre conhecimento e a vida. Para aprofundar precisamos retomar aquela indagação inicial: qual o conhecimento tem a função de promover nossa integração com a natureza e gera a “alegria contínua e suprema“? Para Espinosa existe uma hierarquia nesses três gêneros de conhecimento. Mesmo sendo o segundo gênero do conhecimento mais adequado que o primeiro, o conhecimento da razão tem um papel secundário, ele chega a resultados verdadeiros, mas a função da razão é propedêutica e como tal limitada (FERREIRA, 1997, p.393). O conhecimento racional permite alcançar as propriedades das coisas, mas ainda é um conhecimento limitado, pois, apenas “a ciência intuitiva nos leva a visão imediata […], por ela o homem acede à beatitude, tornando-se consciente do seu estatuto de modo eterno” (FERREIRA, 1997, p.383).
A pesquisadora portuguesa, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, ainda destaca em nota que no Breve Tratado Espinosa já havia pontuado a fragilidade da razão. Ela escreveu: “Finalmente vemos que o raciocínio em nós não é de modo algum o mais importante, mas é apenas como uma escada por meio da qual subimos ao objetivo desejado (Breve Tratado, Cap. XXVI, § 6). Tal fragilidade/limitação é uma constante, fazendo-se sentir tanto no TCI como no Breve Tratado. Na primeira obra somos informados de que o conhecimento racional não conduz à perfeição. No Breve Tratado faz-se idêntica constatação, como prova o texto que acima transcrevemos, bem como quando nos é dito: ‘É por tudo isso que a razão não tem o poder de nos conduzir à felicidade’ (Breve Tratado, II, Cap. XXII, § 1)” (FERREIRA, 1997, p.394, nota 44).
Assim, é possível dizer que o exercício do pensar nem consola e nem dá felicidade, pois a razão não tem poder de nos conduzir à felicidade, e é impotente no combate às paixões. Na Ética Espinosa nos ensinou que um afeto só se combate com outro mais forte, ele escreveu: “um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado” (Ética IV, Prop. 7). Assim, podemos concluir que o conhecimento que nos leva à felicidade é o do terceiro gênero, o conhecimento intuitivo tem a função de nos levar a beatitude.
Depois desta breve tentativa de mostrar a articulação entre conhecimento e a existência humana, quero retomar os primeiros parágrafos do TCI. E quero partir da leitura presente na obra História da Filosofia dos italianos Reale e Antiseri: “Spinoza diz ter experimentado a fatuidade de todas as coisas que constumam (sic) acontecer na vida comum e ter descoberto que elas somente constituíam ‘bens’ ou ‘males’ à medida que o seu espírito deixava-se estimular por elas, pois, na realidade, elas eram todas ‘nem boas nem más’ (aqui, entrelaçam-se estoicos e bíblicos). Foi por isso que, ‘por fim’, ele decidiu-se a procurar a existência do ‘verdadeiro bem’ alcançável, com o qual o espírito humano pudesse se satisfazer plenamente, e, portanto, ver se existia algo que, encontrado e possuído, lhe permitisse ‘gozar eternamente de contínua e suprema Letícia’.” (1990, p.410)
Entretanto, Espinosa reconhece que parecia insensato querer deixar uma coisa certa por outra então incerta. E o certo é que, ao longo da existência humana, os homens em geral resumiram a vida à busca frenética de três coisas: Riquezas (dinheiro), Honras (fama) e Prazeres (sexo). E a dúvida de Espinosa estava exatamente na seguinte questão: Será mesmo que existe para além destas três coisas outra coisa que gera uma suprema felicidade? Ou a suprema felicidade esta na realização destas três coisas? Diante deste questionamento, Espinosa diz que, o risco era abster-se delas por uma ilusão ou o contrário, não se abster e perder a oportunidade de buscar a suprema Letícia. Além do mais, pela Riqueza, honra e prazer “a mente se vê tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outro bem” (§3). Mas, mesmo diante do desafio, ele se coloca na analise e, ao mesmo tempo, na busca desta outra coisa que conduz o homem a felicidade. Conhecer para potencialmente encontrar o sentido da vida humana.
Na sequencia do TCI Espinosa, na postura de pesquisador, mostra como enxerga as três coisas que para muitos se constitui como o sentido da vida.
1) “No que tange à prazer, o espírito fica por ela de tal maneira possuído como se repousasse num bem, tornando-se de todo impossibilitado de pensar em outra coisas; mas, após a sua fruição, segue-se a maior das tristezas, a qual, se não suspende a mente, pelo menos a perturba e a embota” (§4)
2) No que se refere às riquezas, quando elas são perseguidas por si mesmas absorvem continuamente o homem, forçando-o a direcionar todas as suas ações para a obtenção delas. E, quanto mais riquezas se adquirem, mais aumenta o desejo de aumentá-las ainda mais e, portanto, cresce o estímulo para incrementá-las sem cessar. Mas quando, ao contrário, a busca da riqueza se reveste de insucesso, o homem é colhido por imensa tristeza, frustração e moralmente abatido.
3) O mesmo vale também parar a busca das honras, mas com um agravante: para conseguir as honras, que nos são tributadas pelos outros, nós devemos conformar a nossa vida ao modo que precisamente agrada os outros, “fugindo daquilo de que vulgarmente fogem e buscando aquilo que vulgarmente buscam“.
Somos consumidos pela busca desses três objetos de felicidade humana, nossa mente é embotada pela busca louca do prazer sexual que, de acordo com Espinosa, nossa mente não consegue pensar em mais nada. Ficamos paralisados. Mas, não é só o prazer sexual que tem esse efeito, “procurando as honras e a riqueza, não pouco a mente se distrai, mormente quando são buscadas apenas por si mesmas, porque então serão tidas como o sumo bem“. Riqueza, prazer e honra por esse efeito paralisante pode nos escravizar, pois, quanto mais qualquer delas se possuir, mais aumentará a alegria e consequentemente sempre mais somos incitados as aumentá-las. E assim ficamos presos a dinâmica da busca sem fim delas. Sem dúvida a luta desenfreada para conquistar riqueza, prazer e honra nos transforma em viciados. Então, em que medida estas coisas podem trazer de fato sentido para a vida? Por outro lado, abandonando essas coisas, nós não estaríamos deixando “uma coisas certa por outra então incerta“, não seria uma atitude insensata? Ou trata-se de “perder males certos por um bem incerto“? Pois, de acordo com Espinosa, examinando bem, todos os males da humanidade derivam nada mais nada menos do que da busca destes supostos bens.
Por isso, escreveu Espinosa: “Na verdade, as coisas perseguidas pelo vulgo não contribuem em nada para a conservação do nosso ser, mas, ao contrário, são nocivas, tanto que, frequentemente, ocasionam a morte daqueles que as possuem, se assim se pode dizer, e ademais sempre levam à morte daqueles que por elas são possuídos. Quantos sofreram perseguições e morte por suas riquezas e quantos, para a acumulá-las, expuseram-se a uma série de perigos, até pagarem com a morte o preço de sua tolice! E não menor é o número daqueles que, para alcançar ou defender honras, acabaram miseravelmente. E, por fim, são inumeráveis os exemplos de homens que apressaram sua morte pela excessiva libido. Pois bem, qual é a causa desses males? Parecia-me que toda felicidade ou infelicidade depende somente da natureza do objeto a que nos apegamos com o nosso amor. Com efeito, quanto às coisas que não amamos nunca surgem conflitos, nem tristeza se perecem, nem inveja se outros as possuem, nem temor, nem ódio: em suma, não suscitam paixão alguma. Tudo isso, no entanto, acontece por amor às coisas que podem perecer, como aquelas de que falamos. Mas, ao contrário, o amor por aquilo que é eterno e infinito enche o espírito de pura alegria, inteiramente privada de tristeza, o que constitui um bem a desejar e buscar com todas as nossas forças“. (Grifo meu)
Então, quando colocamos toda nossa energia vital para conquistar coisas perecíveis somos afetados de tristezas, pois a felicidade será passageira demais; porém quando nossa energia vital esta dirigida as coisas eternas nossa força se intensifica, pois elas estão privadas de tristezas. Porém, isso ainda não elimina a dúvida levantada por pelo pensador. A solução de todas essas incertezas ocorre do seguinte modo: os prazeres, as riquezas e as honras, diz Espinosa, são males quando são perseguidos como fins, mas não o são quando buscados somente como meios, ou seja, como instrumentos necessários para viver em função de um objetivo superior. Ele escreveu: “A busca do dinheiro, o amor pelos prazeres e a glória só constituem obstáculos quando alguém os busca por si mesmos e não como meio para outras coisas. No entanto, buscando como meio, são passíveis de medida, não constituindo mais obstáculos; ao contrário, podem ser de grande utilidade para o fim pelo qual são buscados“.
Portanto, o bem supremo procurado por Espinosa não elimina nem anula as outras coisas, mas redimensiona totalmente o seu significado e valor. A postura espinosana é de um conciliador. Ele não exclui a riqueza, o prazer e a honra como coisas que podem trazer felicidade, que podem dar sentido a existência humana, mas na perspectiva do pensador não faz sentido buscar o prazer pelo prazer, a riqueza pela riqueza, a fama pela fama. Para ele estas coisas devem ser meio para algo maior e mais significativo. São instrumentos para outras coisas. Busca o bem supremo, que se encontra naquela adequação entre corpo, mente e natureza. Neste momento, Espinosa caracteriza esse bem supremo como o laço que une intimamente a mente com toda a natureza, laço de que deve participar o maior número possível de homens.
Para concluir nossa conversa sobre o sentido da vida no TCI de Baruch Espinosa, devemos destacar que Espinosa afirma que “todas as nossas ações, assim como os pensamentos, hão de ser dirigidos para esse fim. Mas visto que é necessário viver enquanto cuidamos de consegui-lo e nos esforçamos para colocar o intelecto no caminho reto, somos obrigados antes de tudo a supor como boas algumas regras de vida, a saber,” (§16-17).
I) Falar ao alcance do vulgo e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para atingirmos o nosso objetivo.
II) Dos prazeres somente gozar quanto basta para a consecução da saúde.
III) Por último, procurar o dinheiro ou outra coisa qualquer só enquanto chega para o sustento da vida e da saúde, imitando os costumes da sociedade que não se opõem a nosso fim.
Foi isso o que Espinosa, como médico da humanidade, prescreveu como sentido da vida e que ele, em primeiro lugar, viveu durante sua curta vida.
Referência:
CHAUÍ, Marilena. Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
DELEUZE, Gilles. Espinosa filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ESPINOSA, B. Tratado da Correção do Intelecto. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
___. ÉTICA. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro. A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa. Lisboa: Calouste GulbLisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990. (vol.2)

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