ÁGUAS QUE DORMEM

Deleuze escreveu que “a vida é simples, e o homem não para de complicá-la agitando a água que dorme“. Essa frase aparentemente simples, é muito forte e indicativa daquilo que diz. Ela me vez pensar um pouco sobre a dinâmica da existência humana, e assumiu o papel de intercessor, instigou meu pensamento. Isso não é novidade, pois, aprendemos com Deleuze que, só pensamos quando somos violentados, provocados. A violência é que movimenta o pensamento. Assim, essa afirmação sobre a água que é acordada e retira a vida de sua simplicidade me provocou muito. Depois de um tempo, posso dizer que, não tenho dúvidas, boa parte dos problemas da existência humana são frutos dessa situação, sorte tem os animais e as crianças que  não fazem isso e vivem a vida como ela é. Acordamos as águas que deveriam ficar dormindo. Agitamos as águas adormecidas dos acontecimentos sofridos e sofremos as consequências dessa ação mental. Mas, quais são essas águas? São apenas aquelas situações singulares, aquelas feridas não cicatrizadas, os cadáveres que enterramos em cova rasa.  Para Deleuze existe um tipo especial de pessoa que faz isso o tempo todo, ela  vive provocando essa transmutação da vida simples em coisa complicada, é o ciumento. De acordo com ele, os ciumentos são as pessoas que mais pensam, pois são afetadas pelo desejo de saber sobre a verdade da amada, assim o tempo todo estão com o pensamento em movimento. Agitam as águas por coisas banais, insignificantes e, na maioria das vezes, fantasiosas. Os ciumentos estão freneticamente buscando explicações. Eles se deixam levar pelos delírios, pelas fantasias, pelas imaginações selvagens, frutos da insegurança. Mas, não são apenas os ciumentos que vivem essa trágica experiência, como dissemos, as águas adormecidas são dores de feridas não cicatrizadas, são medos, inseguranças, são sensações de abandono, abusos de toda sorte, e outras situações similares, que em certa medida são constitutivas do nosso passado.  Essas pessoas afetadas pelo ciúme ou por estes outros afetos tristes produzem mentalmente situações inimagináveis. Assim, a vida simples, tranquila, calma dá lugar para agitação, e para a complicação da vida. Dores e sofrimentos, angustias e lamentações, traduzem a vida de quem acordou ou deixou acordar as águas que dormem. Poderíamos nos perguntar: a quem interessa essa situação de tristeza? Na esteira do raciocínio de Deleuze, podemos afirmar que apenas quem tem latente desejo de nos dominar se interessa por produzir afetos tristes em nossos corpos. O exemplo paradigmático deste tipo de pessoa são os  fascistas, mas não só eles, pois, como escreveu o filósofo francês, “o poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la“. Como sabemos, depois de Foucault, em todas as relações sociais temos o exercício do poder, para melhor dominar a estratégia é provocar tristezas, por isso podemos ver em muitas relações entre amigos e cônjuges essa produção violenta de afetos tristes. O poder precisa da tristeza, pois, Deleuze em sua exposição afirmou ainda, “a alegria, portanto, é resistência, porque ela não se rende. A alegria como potência de vida, nos leva a lugares onde a tristeza nunca nos levaria“. Sabendo disso, os micros-fascistas das vidas domesticas vão sempre produzir tristezas em suas relações para assim dominar, controlar, subjugar o outro. Sem alegria não temos força para agir, a dor paralisa a vida. A pessoa entristecida fica presa na estação ou na ilha da dor. É possível evitar isso? Sim, não é coisa fácil, pois não estamos totalmente no controle das nossas afecções. Mas, o importante é não deixar ser levados pela imaginação. As águas que dormem no nosso universo interior devem continuar lá, devem ficar imóveis, elas são parte do passado vivido, e como diz o ditado popular “águas passadas (ou no nosso caso, adormecidas) não movem moinhos”. A saída para não entrar na estação da dor é não dar asas a imaginação que podem agitar as águas adormecidas, porque caso a força selvagem dessa imaginação ou delírio consiga colocar em movimento essas águas, teremos muita lamentações, lágrimas e ranger de dentes. Essas dores das lembranças sofridas podem fazer surgir chuvas tropicais, com vendavais frenéticos; mas podem também numa formação mais dramática produzir grandes tsunamis mentais incontroláveis.  Essas águas que dormem podem nos levar a lugares inimagináveis, a lugares terríveis. Não podemos deixar que essas águas consigam ganhar forças para submergir, pois elas retiram a vida de sua condição de simplicidade, e isso gera uma percepção da vida como coisa complicada e sem sentido. Não acordem, e nem deixem acordar, as águas que dormem.