A HISTÓRIA DE AMOR DE FERNANDO E ISAURA – ARIANO SUASSUNA

Ariano Suassuna é um brilhante escritor paraibano, de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), que dispensa apresentação. Sua obra mais conhecida é a peça teatral «O auto da compadecida», uma bela sátira da cultura brasileira, que com bom humor nos faz sorrir e pensar nossas relações com o mundo religioso, político, social da primeira república. Neste outro livro em tela, «A história de amor de Fernando e Isaura», escrito em 1956, quando tinha 29 anos, ele nos emociona e até nos faz chorar. Suassuna oferece aos seus leitores uma versão da clássica história de amor Tristão e Isolda. É um livro breve, não tem cem páginas, nele temos os acontecimentos da vida de Fernando e Isaura. Ele órfão ainda menino, sonhador, trabalhador, sobrinho de um homem poderoso e rico, irmão de sua mãe, Marcos que lhe adotou como filho. Ela jovem muito bela, mãos brancas, sua beleza e temperamento intimidava os homens, por isso aceitou casar com Marcos porque temia ficar solteira, além disso, tinha uma pitada de vaidade porque as outras moças iriam morrer de inveja por ter sido ela a escolhida. Porém, nossa vida não é só escolha e definições racionais, alguns acontecimentos produzem mudanças vertiginosas. O encontro dos dois foi fruto do acaso, estavam andando pela vida quando se cruzaram. Não planejaram nada apenas foram envolvidos por algo mais forte do que eles e que ligou a suas vidas. Após narrar as desventuras do casal Fernando e Isaura, ele escreveu:

Não vale como exemplo para ninguém, pois, ao que parece, para nada serve esse amontoado de acontecimentos sem sentido ao qual ordinariamente se dá o nome de experiência. Apenas, sagrada e triste, contem ela, em si, a dor, as lágrimas, a exultação e os extravios – enfim, o bem e o mal misturados que implica, necessariamente, toda e qualquer história de homem

Nenhuma vida vale como exemplo, pois ninguém deve tentar repetir a vida de ninguém. Cada trajetória existencial é singular, a marca da vida é a singularidade, pois cada uma tem suas marcas, suas escolhas, sua realidade concreta, suas aventuras e desventuras. Desta forma, para Ariano Suassuna, as experiências vividas e sofridas são um amontoado de acontecimentos sem sentido, por isso, não servem nem para quem foi o protagonista, e nem para ninguém, como parâmetro para vivermos no futuro. O passado não deve condicionar o futuro. Não podemos caminhar agarrados ao passado, porque, como disse Henry Miller citado por Deleuze e Guattari, «ir adiante agarrado ao passado é arrastar consigo os grilhões do condenado», que são aquelas correntes com uma bola de ferro atrelada as pernas para dificultar a mobilidade do prisioneiro. Assim, deixar para trás o peso das experiências passadas torna tudo mais fácil. Então não vamos ler as narrativas para repetir em nossas vidas a vida alheia. Isso seria uma atitude insana. Ninguém deve se espelhar na vida de ninguém… Nem real, nem fictício (virtual). Cada pessoa é o compositor da própria vida que, por isso, sabe qual o tom e o ritmo que pode imprimir na composição da sua própria história. Assim, seguir o tom e ritmo existencial do outro pode produzir um efeito colateral, por isso, muitas vezes, tentar viver baseado em vidas alheias nos tornam ressentidos, pois perdemos tempo vigiando o gramado do vizinho e esquecemos de cuidar do nosso, o que faz com que ele padeça. Não é verdade que o gramado do vizinho seja melhor, viva sua vida. Afirme sua vida. Amor fati, pois o querer viver a vida do outro, nos faz ressentidos e esse ressentimento acumulado muitas vezes é porque vivemos uma mentira, vivemos a ilusão de que na vida alheia tudo são flores, nem sempre o que nossos olhos vêem estão realmente dentro do contexto correto. Ninguém sabe as dores e os amores que o outro carrega, como escreveu o poeta Caetano Veloso: «cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é».
A narrativa leve, envolvente, bem estruturada segura o leitor do início ao fim. Não tenho intenção de falar da obra em linhas gerais, mesmo porque, como versão de um clássico da literatura mundial, já é bem conhecida a triste vida de amor desse casal. Mas, existe um detalhe que quero destacar. Não retirei da narrativa das experiências do Fernando e Isaura, mas apenas um alerta do Ariano Suassuna sobre nossa vida. No capítulo intitulado UMA DAMA VIRTUOSA, Suassuna sinaliza uma coisa muito interessante, qual seja, a ilusão humana de achar que é possível ter algo obscuro na vida. As sombras da nossa vida nunca são só nossas. No livro, uma dama virtuosa (ela não tem nome) resolveu revelar para o marido de Isaura que sua esposa estava lhe traindo com seu sobrinho (filho adotivo). Os dois iludidos, ou, na verdade, embriagados pela paixão, achavam que ninguém tinha percebido nada, aquela sombra era só deles. Ledo engano. É ilusão pensar que viver a própria vida sem incomodar os outros lhe imuniza das fofoqueiras de plantão. Não basta se contentar com a própria vida, mesmo não querendo saber da vida alheira, sempre teremos curiosos querendo saber da nossa vida. As redes de revistas, blogs, tabloides, sobre a vida das celebridades se alimenta dessa curiosidade sobre a vida alheia. Ninguém está blindado, protegidos das fofoqueiras. O autor escreveu:

Nossas vidas nunca são obscuras ou tão de nossa exclusiva propriedade quanto desejaríamos. E é um erro julgar que ninguém se ocupa de nós pelo simples fato de nos contentarmos em viver nossa vida, deixando em paz a dos outros”.

Sempre existirá alguém se ocupando de nossas vidas. Antes que alguém levante a bandeira em defesa da dama virtuosa de Suassuna, que só queria abrir os olhos do marido traído, seus quase marido se ele não tivesse escolhido Isaura, sua rival e por isso inimiga, quero lembrar que não foi só este olho sobre a vida alheia que temos na narrativa. No capítulo UM VOZ DO PASSADO temos outro olheiro da vida alheia: Romão, uma pessoa invejosa e de gênio maligno – caracterizado assim pelo o autor, que estava ansioso por ferir o Fernando revelando seu passado, ele que conhecia os motivos que levaram Fernando abandonar a casa do seu tio. Ele até faz isso, mas o preço foi muito alto, mas sempre será alto o preço a pagar. Essas pessoas são tipificadas por Nietzsche como pessoas de má consciência, são pessoas ressentidas, que odeiam a vida, e não suportam a alegria e liberdade de ninguém. Elas ficam sós com sua má consciência e seu tédio, numa vida que nada acontece, escreve Deleuze e Guattari, e, por isso, vivem distribuindo seus beijos de vampiros, sugando a vida feliz dos outros.

Agradeço ao Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada “Uma dama virtuosa” [Técnica: Marcador s/ papel vegetal, 21x28cm].

O HOMEM SEM GRAVIDADE

Essa produção cinematográfica italiana no início parece um besteirol sem sentido, sem graça e massante, mas é um potente pensamento sobre a diversidade. O homem sem gravidade representa todas as pessoas que fogem à dita “normalidade” social. Apesar do avanço na inclusão social, das políticas publicas referentes a acessibilidade em todos os níveis, ainda temos muito a avançar, por isso ainda presenciamos situações que as famílias, para protegerem seus filhos da violência social, preferem educá-los longe do convívio social. O isolamento do diferente ainda é realidade, e tal atitude isolacionista, por um lado, busca proteger a criança num primeiro momento da agressão social, uma vez que a vida em sociedade nunca é tranquila para quem não é “igual”, mas, por outro lado, a fragiliza e a transforma em presa fácil para os exploradores de plantão, pois num dado momento vai sair da bolha criada pela família e, nessa nova realidade, poderá viver um verdadeiro teatro dos horrores. No filme em tela o personagem, Oscar, já adulto abandonou sua mãe e se lançou no mundo após assistir um programa de televisão denominado HOMENS EXTRAORDINÁRIOS, a transformação da pessoa em celebridade pelo que ela tem ou faz de muito diferente, ou por ser muito esquisito. O homem sem gravidade tornou-se sensação no mundo do espetáculo. Televisão, capa de revista, shows, diversão e da noite para o dia ganhou muito dinheiro, e é claro o seu empresário ganhou muito mais. A vida de sonho, a vida desejada por muitos, tornou-se realidade para o Oscar. Ele como todo mundo desejava ser reconhecido, admirado e, sem dúvida, seu maior desejo era viver se relacionando com outras pessoas, abandonar a vida isolada. O desejo move o mundo, porém os desejos são sempre irrealizáveis. Por que não realizamos nossos desejos? Porque nunca se deseja a coisa, o desejo vincula-se a uma imagem da coisa, desejamos uma ilusão da coisa. O desejo está na idealidade, idealizamos as coisas e por isso nunca desejamos as coisas como elas são. A frustração e decepção são frutos desse desejo idealizado, é produto da nossa ilusão. A idealização é a impotência de amar. Oscar por ter vivido isolado desejava uma vida social inexistente, porque idealizada. Mas não é só o Oscar que vive essa experiência ilusória, as pessoas, mesmos aquelas que aparentemente são conscientes dessa verdade sofrem deste mal. A ilusão é marca da vida humana, o desejo daquilo que não existe. Seu maior desejo era sair do isolamento social, entretanto, não tinha ideia que poderia viver a solidão no meio da multidão, mas no momento tinha certeza que a vida sem atividade, sem diversão, sem ação, sem o convívio com as pessoas era a pior coisa do muito. Era desesperador.  Pascal, lá no século XVII, já havia sinalizado o desespero humano de ficar sem desejar algo, sem atividade, sem paixão, sem negocio, ele escreveu: “Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Incontinenti subirá do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a triste, a pena, o despeito, o desespero” (Pensamento 131). Desejamos a diversão, pois não suportamos o tédio, porém na real realidade somos confrontadas com a solidão em meio a multidão, essa busca por interação movimenta a vida pelo medo do nada de sentido da vida. A diversão é a fuga pelo nada que somos. Somos seres insuficientes. Essa luta pelo medo do isolamento movimentou Oscar. Nosso personagem viveu a ilusão do show business. Oscar vivendo o sonho do consumismo, das festas, dos prazeres. Nessa nova vida não existia espaço para sua mãe até o momento que percebeu, ele não era uma pessoa, era uma mercadoria. Descobriu isso quando resolveu contratar uma editora para produzir um livro sobre sua vida. O empresário marcou uma reunião para definir como seria esta história, para surpresa do ingênuo Oscar o que a editora desejava publicar era uma ficção, não sua vida monótona, vivida apenas na presença de sua mãe e avó, ele não tinha pai. Ninguém iria comprar um livro sobre a vida real do Oscar, todos queriam saber do homem que voa, que não sofre o efeito da gravidade. Diante da situação, ele resolveu por um ponto final, já que o mundo é uma farsa, criaram uma morte para o homem sem gravidade. Os jornais, revistas e telejornais anunciaram a súbita morte de Oscar e, ao mesmo tempo, a desconstrução do seu poder extraordinária, anunciaram que tudo não passava de efeitos cinematográfico. Oscar volta a viver juntos de sua mãe até ela morrer, depois vive como cadeirante, trabalhando na recepção de um hotel, na verdade uma casa de prostituição, onde era conhecido como Porta. Existe um desdobramento final quase conto de fadas no filme, ele reencontra com a única criança que teve contado na vida. A Magda que lhe tinha dado uma mochila cor-de-rosa e por circunstâncias não apresentadas na película, tinha se tornado uma prostituta, os dois se reaproximam e recordam as brincadeiras infantis, se apaixonam e casam. Apesar de florear no final, essa produção nos faz pensar sobre o drama da existência, como as pessoas sofrem e são exploradas por serem diferentes. Parece que nessa farsante vida social a diferença nunca será respeitada nela mesma, pois continuamos a subordinar a diferença a uma identidade social dita normal.

VAIDADE, MODA E VIDA SOCIAL

No reino das vaidades o que vale é permanecer sempre na moda: usar as roupas de marca, falar as frases comuns ditadas pelos meios de comunicação, assistir o último filme em cartaz, ler o livro mais vendido [o que não significa o melhor], ouvir a música do momento, saber as últimas novidades sobre as celebridades, conversar sobre as últimas noticias, etc. Todavia, tal postura fragiliza as pessoas, pois, a moda é flutuante e produz pessoas superficiais e vazias. Mas, tenho minhas dúvidas, será mesmo que é a moda que gera pessoas superficiais e vazias ou as pessoas superficiais e vazias que produzem a moda? Ou será que a vaidade é que produz a moda ou a moda que produz a vaidade? Na verdade não sei, o fato é que a moda parece um tipo de febre social, ela surge e domina a pessoa, depois passa. Também não importa tanto a ordem, se é essa febre social que chega primeiro e depois a vaidade ou seu contrário, a questão é que no reino das vaidades as pessoas são envolvidas facilmente pelos trapaceiros, enganadores e saqueadores, por isso o que importa é saber como resistir ou se imunizar de tal coisa?
O conto A nova roupa do rei, de Hans Cristian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês, revela de forma primorosa esta dinâmica. Ele narra a história de um Rei muito vaidoso que tinha um traje para cada hora do dia. Certo dia em seu palácio chegaram dois trapaceiros anunciando que eram os melhores tecelões do reino, e sabiam tecer panos maravilhosos e com uma extraordinária qualidade, de se tornarem invisíveis para as pessoas que fossem ignorantes. De súbito, o vaidoso monarca pensou em produzir uma nova roupa para assim distinguir entre os seus ministros, os sábios e os estúpidos. E, sem titubear, passou de imediato uma grande quantidade de ouro aos dois para que, sem perda de tempo, iniciassem o trabalho. Os dois malandros ficaram dias e noites fingindo trabalhar em dois teares vazios tecendo o pano da nova roupa do Rei. Algum tempo depois, Sua Majestade resolveu ver com os próprios olhos o tecido produzido pelos dois tecelões trapaceiros. Com receio de nada ver, o rei ordenou que seus ministros o acompanhassem. Assim a comitiva real entrou no ateliê e, imediatamente, dois ministros apontaram para os teares vazios e rapidamente exclamaram: Não é magnífico, majestade! Pois acreditavam que os outros estariam vendo o tecido mágico. O rei dissimulou, sacudindo a cabeça, e afirmou: é de fato, muito belo. Não querendo dizer que nada enxergava. E os outros componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, olhavam, mas por mais que quisessem nada conseguiam ver. Mesmo assim, com entusiasmo, todos anunciavam seus elogios: Magnífico, esplêndido, formidável! Eram as exclamações que se ouviam. Naquele momento o que se assistia era um verdadeiro teatro de ilusões, todos colocavam a mascará de sábios, pois não podiam assumir o papel de estúpidos. Com o tecido encantado, que tinha o poder de invisibilidade aos olhos dos mentecaptos, foi produzida a nova roupa do rei, e os elogios ao tecido, que ninguém enxergava, passaram para ela. O monarca tirou sua roupa e recebeu o novo traje dos trapaceiros, que fingiam entregar-lhe, peça por peça. Após se vestir, o vaidoso rei saiu desfilando em uma procissão pela cidade apresentando o novo traje a seus súditos, e nas ruas e janelas todos comentavam: Meu deus, como são lindos os novos trajes do Rei! Como lhe ficam bem! Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam ou se revelariam idiotas. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração. De repente uma voz infantil gritou: O REI ESTÁ NU!
Foi necessária a inocência de uma criança para flagrar uma verdade nua, crua e dura que todos estavam vendo e fingiam não ver, pois os ministros, as damas da sociedade e cavalheiros respeitosos, todos súditos do Rei, bajulavam-no em troca da ilusão. A idéia de levar adiante a farsa agradava os diferentes egos, mas quando a criança revelou a verdade todos se aliviaram de não terem que carregar mais o fardo da mentira. Todos se voltaram para o rei nu e o agrediram com olhares e palavras belicosas, como se ele fosse o único culpado de toda aquela encenação. O terrível é perceber que o conto de Andersen apenas revela a dinâmica da vida social, estamos na mesma roda-viva. Os atores desse teatro podem trocar suas máscaras, porém, a trama da vida social é sempre a mesma: a sociedade de enganadores e enganados. Não digo que os enganados são vítimas dos enganadores. Temos uma relação de cumplicidade, ambos participam e gostam do mesmo jogo, só mudam de posição quando as máscaras caem ou são arrancadas.A vida social revela-se como uma grande farsa. Fabricamos a imagem das celebridades e das genialidades porque parece que nosso ego precisa ser alimentado com a ideia que existem pessoas extraordinárias, super-homens, aqueles que são imitados na vida social. Os produtores da moda agem como hospedeiros do vírus que rapidamente transmite a febre social chamada moda. Envaidecidos com tal posição, com o ego inflado, sentem-se semideuses. Thomas Morus afirma que os homens que têm essa paixão vaidosa julgam-se uns pequenos deuses, pois eles se consideram acima de todos. Estes insensatos, como se se distinguissem da multidão pela excelência de seu comportamento ou conhecimento, erguem orgulhosamente a cabeça, imaginando valer um grande preço, pois são idolatrados pela sociedade em estado febril. Além destes insensatos vaidosos, construímos também nossa própria imagem, baseada nos diferentes alicerces da vaidade, e a colocamos à disposição no mercado dos trouxas [nas redes sociais], onde sempre tem pessoas disponíveis e sedentas por novidades e por novos líderes ou ídolos. Nesta feira de ilusões os valores estão trocados e todos aplaudem o novo rei, não importando quem seja e que tipo de roupa esteja vestindo. Quem, além de uma singela criança, iria delatar o fato que estava na cara de todos? A criança, neste caso, simbolizando a pessoa que ainda não foi afetada pela febre, não foi contaminada com o vírus da farsa social. Porém, não é fácil escapar deste vírus, não é fácil conseguir a vacina que pode nos imunizar. Podemos até pensar que a filosofia pode agir como uma vacina, mas será mesmo que ela tem esse poder? Tenho minhas dúvidas. Não basta ler alguns pensadores para escapar da farsa da vida social. Alguns pensam que vão se imunizar lendo o livro do Olavo de Carvalho: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Tenho certeza que só essa leitura não imuniza ninguém. Como idiotas, a maioria das pessoas vive um mimetismo, como os ministros do Rei do conto de Andersen, falam, andam, comem, se vestem, sentem, repetindo gestos, consumindo as mesmas coisas que todos consomem, numa dança quase sincronizada. Nietzsche denominou esse comportamento de inteligência de rebanho, onde as pessoas se comportam seguindo a ação da maioria. Romper com essa inteligência de rebanho é algo almejado por algumas pessoas que acreditam que a educação tem o poder imunizador e, por isso, confiam e esperam que os ingressos na vida acadêmica recebam a tal vacina e assim se imunizem do vírus da farsa social. Entretanto, mesmo no espaço social que se considera crítico e assim imune dessa postura da inteligência de rebanho não se está livre da vaidade e do modismo. Nas universidades temos  modismos e vaidades que reproduzem essa relação do rei com seus súditos.No espaço acadêmico não estamos livres de tal trama. A professora Rosana Pinheiro Machado produziu um texto fantástico publicado na Carta Capital falando sobre a vaidade no mundo acadêmico [que está disponível no link  http://www.cartacapital.com.br/sociedade/precisamos-falar-sobre-a-vaidade-na-vida-academica].Seu texto é sugestivo a partir do próprio título: Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica. Ela parece agir como a criança do conto de Andersen, aponta e grita: TEMOS REIS NUS NA ACADEMIA. Num depoimento, lúcido e vivo, a autora escreveu: “A vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há uma máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosseiras, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que medida nós mesmos não estamos perpetuando esse modus operandi para sobreviver no sistema? Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo nos perguntando: estamos dividindo nossos colegas entre os ‘fracos’ (ou os medíocres) e os ‘fodas’ (‘o cara é bom’)?”.
Ela sabe a resposta, pois conhece as universidades brasileiras, de hoje e ontem,onde os atores sociais são divididos em dois grupos básicos: os bons e os medíocres, ou os fortes e os fracos, como no conto de Andersen, os sábios e os tolos. E essa divisão entre os alunos fortes e os alunos fracos acontece principalmente a partir do processo de seleção de bolsas de iniciação à pesquisa, à docência e dos projetos de extensão universitária. O desempenho acadêmico é importante, mas ser bolsista é um diferencial dentro deste espaço acadêmico. A formação de uma estudante bolsista sem dúvida é diferente, pois essa experiência lhe proporciona um currículo e uma trajetória dentro da universidade muito mais enriquecedora em relação aos estudantes que não são bolsistas. Além disso, vida de estudante normalmente é uma vida sem dinheiro, porém, numa conversa, um amigo lembrou-me de que, os bolsistas são estudantes diferentes também porque podem contar com dinheiro garantido todo início de mês. Então a tribo de bolsistas é formada pelos alunos fortes e não são estudantes duros, porém não existe uma união entre eles. Se existe uma fronteira entre os fracos e os fortes, existe também uma separação entre os alunos fortes. Os bolsistas muitas vezes reproduzem, num tipo de mimetismo, a linguagem, os trejeitos, a postura e, até mesmo, as brigas de seus orientadores. São simulacros, são personagens representando um papel neste teatro da vida acadêmica. O problema fica grave quando levam muito a sério e acreditam mesmo que são os melhores, seu ego fica inflado e a arrogância ganhando espaço. A vida acadêmica, como parte da vida social, é também uma feira de ilusões. As pessoas são contaminadas e se tornam envolvidas nesse processo. Alguns alunos rotulados de fracos acreditam mesmo na genialidade de seus colegas bolsistas, que na verdade apenas dominaram mais rápido o ethos da academia. Só eles e Deus são testemunhas da angústia e do sofrimento vivido naqueles anos entre provas, seminários, trabalhos e o temível e temido Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC que para muitos se confunde ou se identifica com TNT. “A formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna”. Por causa dessa tensão, muitos não percebem que as experiências vividas na vida acadêmica são encenações teatrais, ritos de passagens. A vida acadêmica é simulação. É preciso leveza e tranquilidade para aprender também a jogar esse jogo. A professora Rosana Pinheiro Machado escreveu que: “os seminários e as exposições orais são marcados pela performance: coloca-se a mão no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima, faz-se um silêncio charmoso acompanhado por um impactante ‘ãaaahhh’, que geralmente termina com um ‘enfim’ [que não era, de fato, um ‘enfim’]. Muitos alunos se sentem oprimidos nesse contexto de pouca objetividade da sala de aula. Eles acreditam na genialidade daqueles alunos que dominaram a técnica da exposição de conceitos”, que na verdade é apenas mais uma farsa, fruto da vaidade. Se no mundo da moda social, as pessoas se orgulham por possuírem roupa, bolsa, relógio, da marca X ou Y, no mundo acadêmico os títulos transformam algumas pessoas vaidosas em proprietários de alguns pensadores ou escolas, como se alguém pudesse ser dono de Foucault, de Marx, outros mais que donos são tomados por um delírio que se sentem a própria encarnação do pensador ou da escola, posso citar as declarações publicas de Sérgio Miceli: “Eu sou Bourdieu (ou quase ele) no Brasil” (Revista Cult, 2012), ou Salvador Dalí: “Eu sou o surrealismo”. Com essa postura apenas reproduzimos este complicado esquema da sociedade dos enganadores e enganados. No espaço do conhecimento a moda e a vaidade têm muito terreno, e nele temos muitos reis nus sendo bajulados e adulados pelos seus súditos.

Assim, precisamos de muita atenção e humildade para resistir a tentação das múltiplas facetas da vaidade, pois ter o ego afagado pode ser bom mas isso é ilusão. Por isso, da mesma forma que precisamos nos imunizar do vírus que produz a febre social, a idiotice e a moda, temos que combater o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os donos de determinados pensadores.Não podemos perpetuar as ocas vaidades nem lá, onde reina a inteligência de rebanho, nem cá, onde temos ou pensamos ter o pensamento crítico, numa inteligência refinada.