NAVEGAR É PRECISO

Boa Noite!

[PROTOCOLO DE SAUDAÇÃO A MESA]

Queridos formandos e queridas formandas, hoje é uma de festa, um dia glorioso não só para vocês, que se lançaram numa viagem numa viagem de mais ou menos quatros anos e agora estão finalizando essa jornada nesta cerimônia de Colação de Grau, mas é também um dia de jubilo para todos e todas que torcem, admiram e amam vocês. Tenho certeza que seus pais, familiares e amigos estão com o coração em festa, celebrando este acontecimento marcante das e nas vidas de todos vocês. Infelizmente, ainda é um privilégio em nosso pais uma pessoa concluir um curso superior numa universidade pública, e, com os ataques as Instituições de ensino, os cortes de verbas e perseguições aos pesquisadores realizadas pelo atual governo, isso poderá se tornar algo raríssimo, principalmente, para os mais pobres. Mas, hoje como disse é dia alegria. E espero que essa alegria compartilhada do fim do curso renove suas forças, e, ao mesmo tempo, como fonte de renovação alimente e lhes fortaleçam para as novas etapas da vida que se abrem, pois, uma coisa é certa, terminar um curso de graduação não é o fim, não é um ponto final, não é meta última. Na verdade, quando terminamos um curso apenas fechamos uma etapa e um novo leque de possibilidades se abre, temos que escolher e decidir qual nova viagem vamos realizar. Seguir a nossa navegação, pois navegar é preciso. Aqui estou a lembrar do famoso poema do poeta português Fernando Pessoa. Ele escreveu um instigante poema que, em seus versos, capturou o espírito aventureiro dos navegantes do século XVI. Nele tem-se a expressão da vida errante em busca de novos mundos. O poeta português escreveu

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
Navegar é preciso; viver não é preciso.

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
Transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida, nem em gozá-la penso.
Só quero torna-la grande,
Ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torna-la de toda a humanidade.
Ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
O propósito impessoal de engrandecer a pátria
e contribuir para a evolução da humanidade”

Não tenho aqui a intensão de buscar o significado do poema para o poeta, a pergunta o que ele quis dizer, ou o que isto quer dizer? O que significa isso ou aquilo? Não é o meu proposito neste discurso. Não quero conduzir, ou melhor, entrar naquilo que é a marca da filosofia da representação. Não quero saber o que representa este poema para o poeta, pois, compreendo que poesia é uma forma de pensamento, e todo pensamento é criação, não é vontade de verdade. Não é representação de nada, é expressão do pensar. A verdade poética, ou cientifica, ou filosófica são produções. E entre essas três formas de pensamento existe uma interligação. Filosofia e arte, filosofia e literatura, filosofia e poesia estão ligadas. Como escreveu Heidegger, numa conferência intitulada “O que é isso a filosofia”: “Entre pensar e poetar, impera um oculto parentesco, (…) apesar que entre ambos se abre um abismo, pois moram nas montanhas mais separadas”. Parece que neste ponto Heidegger tinha razão, ele acertou ao atribuir uma estreita relação entre poetar e filosofar. Digo isso, porque para Deleuze, Heidegger se enganou completamente em filosofia. Para o pensador francês, ele se perdeu nos caminhos da filosofia. Se enganou de povo, de terra, de sangue, pois a raça invocada pela arte ou pela filosofia não é a que se pretende pura (a raça ariana dos nazistas), mas uma raça oprimida, bastarda, inferior, anárquica, nômade, irremediavelmente menor. Deleuze tem razão nessa advertência contra Heidegger, pois realmente ele errou quando apoiou o nazismo, assim como tenho certeza que muitos erraram ao votarem num certo candidato neofascista. Mas, o pensador alemão, acertou ao dizer que existe uma relação estreita entre o fazer poesia e o fazer filosofia. Poetar e filosofar se ligam. E quando nos deparamos com uma poesia como essa do Fernando Pessoa, não temos dúvida dessa articulação. O poema é um potente pensamento sobre a vida errante. O poeta nos faz pensar a força do viver, que está no fluir dinâmico e na superação das adversidades nas aventuras e desventuras da humanidade.
O que podemos pensar a partir dessa sentença inicial do poema:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”

Dentro do contexto de expiração, os navegantes dos Século XVI, parece obvio que para eles existia uma identificação plena entre navegar e viver, viver e navegar, pois para eles navegar é viver. Lançar-se em busca de novos mundos, não ficar ancorado num porto, pois ficar estagnado no mesmo lugar não é viver. A boa vida está em se atirar o tempo todo nas aventuras do além-mar. Entretanto, podemos pensar outras coisas a partir da mesma sentença.

Navegar é preciso, pode sinalizar também que a navegação tem uma certa precisão, pois o navegante se joga ao mar com instrumentos de medição que lhe oferece indicações do rumo a seguir. A navegação não acontece às cegas, o navegante não está jogado a própria sorte na imensidão do oceano, uma vez que ele tem em mãos um conjunto de instrumentos que lhe garante o rumo a seguir: astrolábio, bússola, cartas náuticas. Assim, navegar é uma ação precisa e em certa medida segura. Porém, a vida, nos diz o poeta Fernando Pessoa, a vida não é segura. Viver não é preciso, porque, ao contrário da navegação, não existe precisão nos rumos ou nos caminhos da vida. A vida é imprecisa, ela é repleta de incertezas. Não temos uma bússola indicando o Norte a seguir. Não existe mapas ou roteiros, não há receitas para a vida boa, ou para o bem viver. Claro que sabemos que existe um mercado editorial milionário no Brasil, que vende muitos livros, um verdadeiro mercado das ilusões. Os livros de autoajuda querem ser receituários para a vida feliz e de sucesso. Oferecem o passa a passo da vida feliz, de sucesso e eficaz seja da vida profissional ou amorosa. Mas, sabemos que é isso é uma grande tolice. Os leitores deste tipo de literatura são consumidores de ilusão. Não existe formula para acertar na vida. “O caminho só existe quando você passa”, não há outro caminho sem o nosso caminhar. É nesse sentido que navegar é preciso, pois não existe o novo se não nos lançarmos na navegação.
Assim, como Fernando Pessoa, precisamos desejar este espírito navegante e potente dessa sentença náutica, não para repetir o que já estamos cansados de presenciar, nem para gozar a vida, mas para nas adversidades, nos momentos desesperançados, na luta diária, torna-la grande e digna de ser vivida. Como podemos fazer isso? Qual a grandeza do viver? O próprio Pessoa nos indica em seu poema. É necessário transformar a forma da sentença náutica para que ela se encaixe em nossas vidas. Para ele “viver não é necessário, o que é necessário é criar”, a razão da existência para Fernando Pessoa era criar poesia, escrever, produzir. E aqui lhes pergunto: O qual a razão de sua existência, queridos formandos e queridas formandas? Só vocês podem responder, não com palavras, mas na ação diária. Na vida encarnada naquilo que dá sentido à sua existência. Além disso, o poeta português no diz que nossa vida não pode ser apenas nossas, é preciso torna-la de toda a humanidade, ainda que isso tenha o preço alto de se perder a própria vida. A grandeza da vida está na doação, na busca de reinventar e resignificar o viver. Não podemos ficar estagnados no mesmo porto, na mesma estação, pois o importante na vida é não ficar parado. Navegar é preciso. Eis o desafio da vida, resistir as adversidades, superar os obstáculos, não ficar só lamentando. Viver é perigoso, nos ensinou o grande mineiro Guimarães Rosas, mas basta ter coragem para se lançar nas aventuras e desventuras da vida. Resistência e esperança são os dois ingredientes que desejo em abundancia para vocês, queridos formandos. São eles que vão garantir que vocês não tenham medo de se lançarem nas novas viagem no mundo do trabalho, na vida docente, na vida acadêmica em algumas pós-graduação. Por isso, não tenham medo de ousar, arriscar, de buscar o novo. Mantenham na vida a resistência na luta cotidiana, e esperança no coração que um mundo melhor, mais justo e fraterno é possível. Vamos construí-lo num trabalho coletivo, ninguém está sozinho neste mundo. E nossa vida dever servir para edificar um mundo inclusivo e amoroso, contra todas as formas de discursos de ódio e exclusão. Toda vida vale a pena, não existe vida descartável.

Muito obrigado pela atenção. Parabéns pela conquista e muita força para seguir sua trajetória neste mundo tão complicado. Não esqueçam de que navegar é preciso, viver não é preciso.

OBS 1: Este discurso seria pronunciado na Colação de Grau da turma de Ciências Humana – Sociologia da Universidade Federal do Maranhão – Campus III – Bacabal-MA, quinta-feira, dia 26 de março de 2020, porém por causa da pandemia foi cancelada, entretanto, resolvi homenagear a turma publicando aqui no meu blog como forma de agradecimento por ter sido escolhido como padrinho da turma.

OBS 2: Quero também agradecer ao Nertan Silva-Maia, meu amigo e colaborado do Blog, pela ilustração intitulada NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO, aquarela s/ cartão, 20×28,5cm.