DOSSIÊ TEMÁTICO GILLES DELEUZE

Notas preliminares sobre a presença de Heinrich Von Kleist nas obras de Gilles Deleuze

CLEVER LUIZ FERNANDES

Resumo

Este trabalho são notas introdutórias sobre a presença de Heinrich von Kleist nas obras do filósofo francês Gilles Deleuze. Nele destacou-se apenas a presença manifesta deixando para outro momento a presença latente. Na produção de sua filosofia é visível a influência do romancista alemão, pois Deleuze não poupa elogios à Kleist, colocando-o como um dos maiores escritores do século XIX. O Kleist de Deleuze é um autor incuravelmente menor, pois não aceitava as severas lições de Goethe, é também um pensador nômade, intempestivo, rizomático, uma louca máquina de guerra. Para ele, a marca inovadora e revolucionária de Kleist foi transformar a força dos afetos em arma de guerra, gaguejando na própria língua, usando toda a sua intensidade, tornando-se um estrangeiro em sua própria língua.

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VIVER COM E COMO ESPÍRITO LIVRE

Não é fácil relacionar-se com os espíritos livres, com as mentes libertárias, pois precisamos primeiro travar uma forte luta contra o fascista que habita dentro de nosso universo interior e isso gera dor e sofrimento. Da mesma forma, não é fácil ser um espírito livre, pois, além da luta contra o fascista interior, é preciso lidar com a vertigem das alturas do voo. Medo e insegurança são as forças de gravidade que tentam impedir o voo… Mas é preciso coragem para se lançar no vazio onde acontece o voo livre e solitário… caso contrário, seremos como “Serenas” (do The Handmaid’s Tale – o Conto da Aia, da Margaret Atwood) e/ou “Penélopes” (da Odisseia, do poeta Homero) submissas dentro de suas gaiolas, morrendo e definhando em suas vidas passivas, reativas e ressentidas, se anulando, se castrando. Uma vida vivida esperando as ordens do comandante, ou na espera infinita do retorno de Odisseu. A vida do espírito livre é vida de “Lous Andreas-Salomés” (filósofa do século XX, por quem Nietzsche foi apaixonado) e “Fridas Kahlos” (artista mexicana), que querem ninhos para pousar apenas quando desejam, numa vida ativa, proativa e satisfeita, se realizando e sendo feliz. Como escreveu Lou Andreas-Salomé:

“ Ouse, ouse… ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!! ”

Para viver como espírito livre é fundamental não ceder aos macro-fascismos, com suas leis, modelos e “necrobiopoder”, que nos rodeiam e tentam esmagar até nossos pensamentos; e nem aos micro-fascismos domésticos, que querem domesticar as nossas vidas para ficarmos limitados as pastagens permitidas e devidamente demarcadas, bem estriadas, sem aventura, sem novidade, sem liberdade. Estes pequenos fascismos que com chantagens e mesquinharias tiranizam nossas vidas cotidianas… Temos que reconhecer, como nos ensinou Michel Foucault, que o inimigo maior da vida é o fascismo, “que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”… amar controlar a vida alheia e/ou ser controlado. Para os fascistas de plantão podemos cantar como Cazuza, no seu Blues da Piedade:

“Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm

[…]

Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada”

Precisamos de coragem para não nos deixarmos ser covardemente arrastados para a vala fácil do fascismo. A vala das intensidades tristes, das emoções que produzem e alimentam o delírio, a embriaguez e a alucinação… tipo das vividas pelos ciumentos em suas emoções delirantes e alucinatórias que povoam o seu deserto interior de toda sorte de coisas e seres inimagináveis… O mundo não parece um moinho do poeta Cartola, o mundo é um deserto, um deserto que contraditoriamente está povoado por seres da imaginação delirante. São eles que vão reduzir as ilusões da vida feliz a pó. A vida é o que é, nem alegre, nem triste, nem repleta de dor e sofrimento, nem transbordante de felicidade e prazer. Dela teremos um pouco de tudo, num fluir dinâmico, oscilando entre uma coisa e outra, querer parar este fluxo inexorável é cair na vala delirante… Cair no mundo dos fantasmas, do passado apavorante, das lamentações, dos fingimentos, das queixas, das dores… É não viver a vida em sua plenitude. É matar a possibilidade… Mas existem outros mundos possíveis, onde espíritos livres e mentes libertárias não são sufocadas: “Um pouco de possível, senão eu sufoco”, Gilles Deleuze.

O ANTAGONISMO DAS FORÇAS 

O ANTAGONISMO DAS FORÇAS É O GRANDE INSTRUMENTO DA CULTURA


O antagonismo das forças é o grande instrumento da cultura. Pastel s/ Canson, 30x42cm. Nertan Silva-Maia, 2019.

O pensamento é fruto da violência, não se pensa por uma questão natural, nós não pensamos porque somos dotado de um órgão pensante e nem somos máquinas pensantes, pensamos apenas quando somos provocados por um signo. E podemos afirmar que o desenho do Nertan Silva-Maia é um tipo de intercessor, que nos violenta e nos faz pensar. É um signo provocador, pois a arte existe para afligir. Arte que não aflige não é arte. Ela é um instrumento na luta e está sempre provocando o poder. Como nos ensinou Foucault: onde há poder sempre haverá resistência, assim a arte é resistência ao poder constituído. Por isso, quando estamos diante de uma obra de arte não é possível ficarmos indiferentes. Naquele instante singular, entramos num tipo de experiência do pensamento. Forças em luta, em movimento, provocando um turbilhão de pensamentos e sentimentos. O título da sua ilustração é muito sugestivo, e pode ser considerado, uma tese: O ANTAGONISMO DAS FORÇAS É O GRANDE INSTRUMENTO DA CULTURA. Nertan mostra e nos faz reconhecer que a cultura deve ser compreendida como uma luta de forças antagônicas e, ao mesmo tempo, esse antagonismo das forças são instrumentos na e da produção cultural. Nessa dinâmica, pois não existe antagonismo estático, o artista nos lembra que não existe cultura homogênea, pura, uniforme, lisa. Em sua ilustração, Silva-Maia brinca com uma explosão de cores, traços zigzaguantes, para dar sequência em sua tese. Cultura é plural. Nessa brincadeira com as cores e traços ele produziu duas zonas distintas e diferentes em sua forma e cores numa luta frenética. Porém, longe do dualismo binário, simplista e raso, Nertan revela a pluralidade heterogênea da realidade. Diferença, diversidade, são as marcas nas multiplicidades das cores vivas da gravura. São as forças em luta antagônicas buscando ampliar seus espaços do mundo sócio-cultural. A luta pela hegemonia. Para expressar essa luta, é visível a violência nos traços do desenho, o artista no seu ofício de produtor de pensamento usa de todos os recursos. Linhas, cores, a mistura de cores em tonalidades diferentes, as formas e os traçados produzem os efeitos desejados para expressar um pensamento sobre a sociedade. Neste desenho, Nertan expressou com toda a sensibilidade dos artistas sua percepção sobre o momento turbulento de nossa cultura. O Brasil e suas forças antagônicas em luta, em disputa. Não tem como não perceber, pulsa no desenho essa situação vivida nos último anos. Sem duvida, estamos vivendo um antagonismo inconciliável entre essas forças em luta, isso é uma característica fundamental de nossa cultura política. Presenciamos a dilatação da fissura social, ela tornou-se abissal. As forças em disputas não são conciliáveis. Estamos vivendo nessa luta de forças antagônicas uma tensão gerada, ou na verdade alimentada, principalmente por uma moralidade obsessiva, paranóica, estão tentando universalizar o particular, uma experiência de fé religiosa individual quer se impor a preço da exclusão das minorias que não aceitam ser tingida com as cores dessa maioria. Assim temos uma tensão no ar, predominando a desconfiança de todos contra todos. Numa cegueira da realidade, que está dissipando a objetividade. A verdade fruto da convicção e não a partir dos fatos e dos dados da realidade. A sensação é que existem pessoas que querem o mundo em preto e branco, parecem temer o arco íris. A pluralidade das cores, o cosmos tem um espectro enorme de cores para além do binarismo preto e branco. Apesar da cegueira, o mundo é multicolorido e a Terra não é plana. Entretanto, tenho certeza que, não podemos limitar ou reduzir o desenho a mera manifestação da vertigem e embriaguez dos nossos acontecimentos recentes. Todavia, salta aos olhos essa luta entre grupos de nossa cultura em ação tentando se impor, sufocando os diferentes. Um pouco de possível se não sufoco, o apelo de maio de 1968 volta numa expressão gráfica muito interessante. Parabéns meu nobre e estimado amigo, obrigado por compartilhar essa obra de arte.